Para ser feliz não é preciso muito, algum sábio já disse. E, ao ler o texto da professora e escritora Ana Catarina Silva Fernandes, é possível concluir que é possível ser feliz quando se permite enxergar o outro em sua essência. Ao ser presenteada com um quadro de Dorian Gray Caldas por Tereza Custódio, presidente da União Brasileira dos Escritores do Rio Grande do Norte, Ana Catarina conseguiu descrever imagem, sensações e o turbilhão de emoções que a arte pode causar depois de um simples olhar mais cuidadoso e atento. Segue abaixo o texto que deve ser saboreado com a mesma paixão com que foi escrito.

Um Dorian Gray Caldas – Só para mim

Pauso o vídeo para ouvir a parte em que Dorian Gray Caldas comenta sobre o estranhamento de desenhar dois tapetes com motivos de besouros. Ele ri e comenta da perplexidade diante “desse pedido” – diz: “besouros é estranho, né?”. Esse comentário é um atestado de que a obra de arte vista pelo seu criador é tomada também como motivo de alumbramento. Então, passei a acompanhar os percursos dos vídeos disponíveis desse artista plural e o que me fascinou foi o modo como falava vivamente de suas experiências artísticas. A despreocupação em devotar à tapeçaria os créditos de sua vida abastada; o humor que vinha por meio do colorido alegre de sua voz, quando contava o número de algumas personalidades, que tinham suas peças – “Roberto Marinho tinha trabalho meu”,” Gilberto Freire tinha trabalho meu”,” Alison Paulo de Melo tinha trabalho meu…”  Com isso, a minha curiosidade vai além das linhas das cores vivas dos tapetes de Dorian Gray:desse universo fauvista,como ele bem salientava.

Viro as páginas e deparo-me com os desenhos marcantes dos casarios – suas cores e formas que detalham em verdes, amarelos, ocres, vermelhos, azuis…  telhados, portas, janelas, sacadas, beiras, torres e vãos de um tempo diluído em papel e pinceladas. E é possível “sentir” a solidão profunda das casas que olham languidamente para o olhar dos curiosos. Lembro do verso de Drummond – “As casas espiam os homens.” Além do empréstimo à beleza dos dizeres de Franco Jasiello quando escreveu: “estes casarios suspensos em tempo que nenhum relógio ou calendário registra, entre a ânsia do amanhecer e a misericórdia da noite que inicia, plantados na luminosidade da água…”

Observo as nuvenzinhas sugeridas nas pinceladas “quadradas” do quadro presenteado a mim por Tereza Custódio, presidente da União Brasileira dos Escritores do Rio Grande do Norte. Sim, este advento desse régio presente se deu na FLIQ 2021, por volta das 16h, de uma quinta-feira de muita luz e calor, no Parque das Dunas. Tereza anunciou: “O quadro de Dorian Gray Caldas é seu, Ana Catarina –Meu. Pronto. A felicidade todinha em um conjunto de casinhas “perdidas” em pinceladas geométricas retangulares e quadradas. E de uma igrejinha que guarda para mim a sacralidade desse momento de luz-balão. Penso que a melhor descrição de toda a minha emoção, já foi dita e pode se dizer de novo pela descrição de um trecho de Felicidade Clandestina de Clarice Lispector – “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingir que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.”

Procuro lugares diferentes para colocar o quadro. Entre o corredor, a sala e o quarto. E preciso que ele fique por perto, ao alcance dos sentidos. Vejo se há luminosidade suficiente que reflita ainda mais o degradê dos azuis do céu. Tento compor a paleta de cores para esta aquarela, traço com as mãos o movimento das pinceladas. Rezo um pai nosso diante da cruzinha da igreja. Dádiva. Conto o número de casinhas para me certificar de que estão todas ali. De que, por “uns instantes, são minhas”. Vou no barquinho que se vai ao longe cortando a linha do horizonte. Detenho-me um pouco mais nos espaços em branco em que a tinta “não maculou”. Procuro por traços que lembrem pessoas e nada – pernas, braços, rostos… Estão todos dormindo, profundamente dormindo… E eu sonho este sonho bom de realidade em ter um Dorian Gray Caldas só para mim. Obrigada, Tereza Custódio, por esse bálsamo em forma de arte.

Fotos: Marciano Costa